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domingo, maio 21, 2006

Capítulo 16

O Certo


Dois homens argumentavam. O mais velho, troncudo e mais baixo, era quem mais falava. Ficava de pé, sentava, caminhava de um lado para outro. Gesticulava com os braços, e batia na mesa com o punho. Suas palavras lhe jorravam da boca como torrente incontrolável. Falava como trovoada. Sussurrava rouca- mente.
O outro homem, mais moço, estava sentado numa cadeira. Pálido e magro, seus olhos penetrantes brilhavam na sua face barbada. Sacudia a cabeça. Levantava a mão para interromper. Protestava, quando encontrava uma brecha. Não posso fazê-lo, dizia. Não é para mim. Sou acanhado e tímido. Fico com medo diante das dificuldades. Além disso, estou freqüentemente doente. Uma sala de estudos é o lugar para mim. Sou um homem de letras. Como poderia fazer compromisso com uma igreja se eu me sinto chamado a servir todas? Não pode exigir isso de mim. "Em nome do Senhor", tem piedade de mim e permita-me "servir a Deus de outra maneira."
A vela na mesa continuava a queimar-se. E o argumento prosseguia. Finalmente, o mais velho, apontando aos céus, vociferou: "Digo-te, em nome de Deus todo-poderoso, que estás apresentando os teus estudos como pretexto. Deus te amaldiçoaria se não nos ajudares a levar adiante o Seu trabalho, pois doutra forma estarias buscando a tua própria honra em vez da de Cristo!"
O homem dos olhos penetrantes abaixou a cabeça, O silêncio dominava o quarto. Cessara a discussão. "Senti .como se Deus tivesse estendido a Sua mão do céu em minha direção para me prender.... Fiquei tão aterrorizado que inter- rompi a viagem que havia encetado....Guilherme Farel me reteve em Genebra." O viajador, João Calvino, concordou em ficar.
Que desejava o ousado e fogoso Farel de um homem adoentado com somente vinte e sete anos de idade? Farel, que estava acostumado a conquistar homens e cidades - que necessidade tinha deste homem acanhado que lhe era vinte anos mais jovem?
Ninguém podia conquistar uma cidade para o Evangelho como Guilherme Farel. Tendo-a conquistado, era então que o trabalho começava de verdade. Vinha depois o planejamento cuidadoso, a firme liderança, a edificação. Farel não era o homem para essa atividade; ninguém sabia isso melhor do que ele mesmo. Era magnífico numa batalha. Mas se perdia completamente na rotina diária de planejamento e consolidação. Não podia dar a liderança firme e constante que uma cidade explosiva como Genebra precisava.
A Reforma em Genebra já começara a ter seus problemas, O povo, que tinha sacrificado tudo para não se submeter ao duque, estava agora voltando a vivência normal de cada dia. Muitos voltaram a vida desenfreada que antes dava fama à cidade. Estavam dispostos a esquecer a fé Protestante, que tinha chegado a cidade juntamente com a luta pela liberdade.
Enquanto o duque estivera as portas da cidade, todos tinham se unido numa causa comum. Os diferentes grupos estavam agora vindo a tona outra vez, odiando-se mùtuamente, tramando para assumir o controle dos conselhos de representantes. Havia os novos Protestantes. E havia os que se chamavam de patriotas verdadeiros. Os patriotas não se conformavam com a importação de pregadores franceses para dirigir a nova igreja Protestante.
No meio de todo esse sentimento, Farel e seus auxiliares estavam perdendo a sua influencia. O povo não gostava de leis que os obrigasse a uma determinada forma de comportamento. Eram todos, oficialmente, membros da igreja Protestante. Mas quantos havia cujos corações empedernidos continuavam no mesmo! E que aconteceria a esta nova cidade Protestante se alguém não arquitetasse os planos para transformar a cidade rebelde numa cidade de Deus?
Foi du Tillet, o amigo de Calvino, que tinha contado a Farel que Calvino estava passando a noite em Genebra. De repente, Farel viu a solução para os seus problemas. Aqui estava um líder da Reforma, um homem na flor da idade, brilhante, cujo preparo em direito o capacitava para tratar com os conselhos bem como com as facções da cidade. Sobretudo, aqui estava um homem que compreendia os ensinamentos bíblicos melhor do que qualquer outro homem da época. Este homem poderia ensinar a Palavra de Deus a outros. Auxiliado pelo Espírito Santo, poderia transformar as vidas dos habitantes de Genebra. Calvino era a resposta de Deus para o problema de Genebra. Farel não tinha duvidas sobre isso. Correu depressa pelas ruas estreitas a pensão onde Calvino se hospedara.
E agora Calvino tinha concordado em ficar. Disse aos seus irmãos em Genebra que precisava ir primeiramente a Basel para trazer um parente e alguns dos seus pertences. Visitaria algumas igrejas a caminho. Dentro de poucas semanas estaria de volta a Genebra para fixar residência.
Calvino cumpriu sua promessa. Mas, "logo que voltei a Genebra", escreveu a um amigo na França, "um resfriado violento me atacou, afetando as gengivas supe- riores. Mesmo depois de nove dias não me senti melhor, embora tenha sido san- grado duas vezes, tomado uma dose dupla de pílulas e recebido a aplicação de vários cataplasmas."
Tal introdução a Genebra não foi muito auspiciosa. Levantou-se da cama para começar seu trabalho de aulas diárias em Saint Pierre. O seu título era suficientemente pomposo: Professor de Sagradas Letras. Mas era um professor sem salário. Em setembro de 1536, Farel requereu ao conselho da cidade que empregasse Calvino como professor das Escrituras e que o pagasse pelo seu trabalho. O conselho atendeu ao pedido, mas somente em fevereiro do ano seguinte é que lhe deram o primeiro pagamento. Entrementes, nas atas do conselho, a referência a Calvino se restringia a "aquele francês". Ou era bem desconhecido ou o secretário do conselho não sabia o seu nome.
Todas as tardes Calvino subia pela pequena rua íngreme que levava a catedral. Ali dava palestras no imenso auditório, que estava agora despido das suas imagens e altares. Um pequeno grupo ia ouvir as suas conferências sobre as epístolas de Paulo. Além dos seus estudos e correspondência, Calvino trabalhava numa versão francesa das Institutas.
Calvino estava meditando também sobre o que ocorria ao seu redor. Com uma tristeza mesclada com raiva, Calvino via o povo de Genebra voltando a vida que tinha abandonado durante a luta contra o duque. As tavernas estavam sempre repletas. Bêbedos cambaleavam pelas ruas. Dados chocalhavam alegremente nas rodas de jogo. Os homens não guardavam segredo quanto as suas amantes e o uso que faziam das prostitutas. Plataformas eram montadas nas praças para um grande período de danças. Calvino achava que o povo se vestia espalhafatosa e imodestamente. Os homens trajavam culatras talhadas ao invés de túnicas modestas. As mulheres exibiam suas sedas e jóias com estilos insinuantes.
Tudo isso numa cidade que tinha sido oficialmente declarada Protestante! Muitas dessas pessoas tinham solenemente levantado suas mãos em Saint Pierre, jurando viver pela Palavra de Deus. Pertenciam todos a Igreja de Genebra. Como poderia um asilado francês, mal conhecido entre eles, começar a ensinar-lhes a fé que não conheciam? Como poderia conduzi-los a uma vida de consagração tão diferente da imoralidade diária que praticavam?
Talvez o texto dos dias de perseguição na França tivesse servido de consolo a Calvino nesses dias: "Se Deus é por nos, quem será contra nós?" Quem, deveras!