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domingo, maio 21, 2006

Capítulo 11

Um Livro a um Rei


O homem a quem o livro de Calvino foi dedicado jamais chegara a ler a carta de vinte e uma páginas que lhe fora endereçada. "A sua Majestade Cristã, Francis, Rei dos Franceses e seu Soberano, João Calvino almeja paz e salvação em Cristo." Assim começava a carta, em latim. Mas a "sua Majestade Cristã, Francis", estava ocupado com suas amantes e seus bailes, com seus esquemas para fazer alianças contra seus inimigos. Talvez teria lido a carta e os capítulos que a seguiam se alguém o tivesse convencido que o tal livro, após quatro séculos, ainda seria incluído entre o punhado de obras que moldariam o pensamento do mundo. O rei Francis não podia adivinhar que a carta que lhe fora endereçada seria considerada uma obra-prima de eloqüência candente, e que seria lida por milhões em muitas línguas. As Institutas da Religião Cristã, por João Calvino de Noyon, não haviam começado como um apelo ao rei da França. Tinham a intenção de ajudar os novos Protestantes que precisavam conhecer as verdades da Bíblia. Ninguém da Reforma tinha escrito estas verdades numa forma ordenada. A grande contribuição de Lutero tinha sido a tradução da Bíblia para o alemão, e havia também escrito outras coisas sobre vários assuntos. A Igreja de Roma tinha um grande sistema daquilo que considerava ser a verdade. O povo da Reforma tinha a Palavra de Deus, mas quem os conduziria a compreendê-la no todo? Quem lhes mostraria o que ela dizia sobre Deus e Jesus Cristo e o Espírito Santo, sobre os sacramentos e a igreja, sobre fé e oração, sobre a lei e liberdade na vida cristã?
Tal manual, um pequeno livro, estava sendo preparado pelo asilado francês em Basel quando chegou-lhe a notícia das mortes ardentes dos seus amigos. Veio- lhe, depois, noticia sobre as mentiras de Francis I. Com um repentino lampejo de propósito, Calvino percebeu como poderia defender perante o mundo a verdadeira fé daqueles que estavam sendo tão falsamente acusados. Ele viu, outrossim, como poderia até comover o coração do próprio rei. 0 livro tornou-se mais do que um manual. de estudo. Transformou-se numa magistral confissão de fé a fé que estava sendo selada com a carne carbonizada dos mártires da França.
" Quando iniciei este trabalho, Excelência", diz Calvino ao seu rei, "nada mais longe dos meus pensamentos do que a idéia de escrever um livro que seria mais tarde presenteado a vossa Majestade. Era intenção minha somente formular alguns princípios elementares pelos quais os interessados... pudessem ser instruídos sobre a natureza da verdadeira piedade. Empreendi tal labor em prol, principalmente, dos meus patrícios franceses, multidões dos quais vi estarem sedentos de Cristo, mas pouquíssimos possuindo qualquer conhecimento real a respeito...Mas quando vi que a fúria de determinados homens perversos no vosso reino tinha crescido a tal ponto de não deixar lugar no pais para a sã doutrina, considerei que eu seria melhor empregado se no mesmo trabalho eu lhes entregasse minhas instruções, como também vos exibisse minha confissão, para que soubésseis a natureza daquela doutrina que é o objeto de tanta cólera incontida por parte daqueles loucos que ainda agora estão convulsionando o pais com fogo e espada... "Eu vos rogo, por conseguinte, Excelência e certamente não é um pedido exorbitante tomar para vos a compreensão cabal desta causa que até aqui tem sido agitada confusa e descuidadosamente, sem qualquer ordem legal, e com afrontosa paixão em vez de seriedade judicial. Não penseis que esteja eu agora delineando minha própria defesa individual a fim de operar um retorno seguro para meu pais natal; porquanto, embora eu sinta por ela a afeição que todo o homem deva sentir, mesmo assim, nas atuais circunstâncias, não lamento que eu esteja dela removido. Pleiteio, porém, a causa dos piedosos, e, conseqüentemente, do próprio Cristo. Certamente, Excelência, não desviareis os vossos ouvidos e pensamentos de tão justa defesa....Esta é uma causa que é digna da vossa atenção, .digna do vosso trono.
" Que mais direi? Deveis rever, Excelência, todas as partes da nossa causa e considerar-nos pior do que a mais abandonada parcela da humanidade caso não descobrirdes claramente que labutamos e nos esforçamos sobremodo, porquanto temos pasto a nossa esperança no Deus vivo, porque cremos que a vida eterna é conhecer o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem Ele enviou. Por causa desta esperança estamos alguns acorrentados, outros flagelados com açoites, outros carregados daqui para ali como palhaços, outros torturados cruelmente, outros que escapam pela fuga..."
Com a mente aguda de exímio advogado, Calvino argüi cada acusação levantada contra os Protestantes. Cita as Escrituras abundantemente. Cita os santos padres da igreja. Sua linguagem é, as vezes, incisiva e forte. Ele esta pleiteando com o rei, mas pleiteia a verdade e não tem receio de usar linguagem candente.
"Somos pacíficos e honestos", é a maneira de descrever a si mesmo e aqueles na França que são acusados como agitadores. "Mesmo agora no exílio, não deixa- mos de orar para que toda a prosperidade vos acompanhe e ao vosso reino." Aprendemos, "pela graça divina", a sermos mais pacientes, humildes, modestos. Se alguns usarem o Evangelho como um "pretexto para tumultos", tendes as leis para puni-los. Mas não culpeis, então, o Evangelho de Deus.
“ Excelência, ...não perdemos a esperança de recuperar vosso favor se lerdes com calma uma única vez... esta nossa confissão, que pretende ser nossa defesa perante vossa Majestade. Se ao contrário, porém, os vossos ouvidos estiverem tão preocupados com os cochichos dos mal-intencionados a ponto de não permitir aos acusados a oportunidade de falarem por si mesmos, e se aquelas fúrias afrontosas, com a vossa conivência, continuarem a perseguir com aprisionamentos, açoites, torturas, confiscações, e chamas, seremos, indubitavelmente, como ovelhas destinadas ao matadouro, reduzidos as maiores agruras. Mesmo assim, com paciência, possuiremos nossas almas e aguardaremos a poderosa mão do Senhor, a qual incontestavelmente se manifestara a bom tempo, mostrando-se armada para resgatar os pobres das suas aflições e para punir os seus despertadores, os quais agora exultam amparados por perfeita segurança. Queira o Senhor, o Rei dos reis, estabelecer vosso trono com retidão”, e o vosso reino com eqüidade”.
Estas foram algumas das sentenças eloqüentes que Francis, rei da França, jamais leu. O livro cresceu nos anos seguintes. Geralmente chamado as Institutas, cresceu como uma planta cresce da semente. Em quatro edições, Calvino aumentou-o de seis para oitenta capítulos, constituindo quatro volumes grandes. Nada havia nos oitenta capítulos que já não estivesse na semente dos seis capítulos. O homem doente de cinqüenta anos que mais tarde labutaria para concluir a edição final não interpretava a Palavra de Deus de modo diferente daquele moço de vinte e cinco anos escondido em Basal.
Na sua ultima edição de 1559, as Institutas seguiram a ordem do Credo dos Apóstolos na discussão das "verdades da religião cristã". Três das quatro edições foram publicadas em latim escorreito. A outra, num francês vívido e magnífico. Nos dias de hoje as Institutas podem ser lidas em, pelo menos, dez línguas.
Foi assim que apareceu a poderosa obra que recolheu da Palavra de Deus um completo sistema doutrinário. As Institutas começaram com Deus, concluíram com Deus e encontraram todas as coisas em Deus, o Deus triúno. Calvino escreveu com clareza, com uma lógica de advogado. Escreveu eloqüentemente, como um autor que maneja com perícia as suas palavras. Escreveu brilhantemente, com uma mente que aprende a inteireza da verdade de Deus como é possível ao homem conhecê-la. Escreveu apaixonadamente, com um coração devotado inteiramente ao seu Senhor. E escreveu humildemente, porquanto sua vida tinha sido resgatada do lodaçal do pecado unicamente pela graça de Deus. Ninguém havia escrito assim anteriormente. E, posteriormente, ninguém conseguiu escrever de maneira a aproximar a magnificência com que Calvino expôs as "verdades da religião cristã".
Mas João Calvino de Noyon não tomou conhecimento deste sucesso. Preferiu, mesmo nos dias da primeira edição, ficar as escondidas, por detrás de porta fechada, usando nome fictício. "Que o meu objetivo não era a aquisição de fama transpareceu no seguinte: logo após a publicação sai de Basel, e ainda do fato que ninguém lá sabia que eu era o autor." O pensionista da Sr.ª Klein, Martinius Lucanius, tinha gasto muito do seu tempo na oficina marcada pelo Urso Preto. Estava lendo as provas do livro cuja página inicial dizia em latim: "João Calvino de Noyon". Era fevereiro de 1536. Quando concluiu a revisão, antes do livro aparecer a venda em março, Lucanius e seu companheiro du Tillet haviam saído da cidade. Na estrada ao sul de Basel, ucanius tornou-se Charles d'Espeville, um nome que significa Cidade de Esperança. Du Tillet tornou-se Louis de Hautmont, que significa Montanha Alta. Os senhores Cidade de Esperança e Montanha Alta estavam a caminho da Itália, a terra do papa, sede da Igreja de Roma.