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domingo, maio 21, 2006

Capítulo 12

Viajando pela Itália e França


Num castelo no norte da Itália vivia uma mulher francesa que teria sido rainha da França não fosse a lei que determinava que o trono era para homens tão somente. Filha do rei Louis XII, a princesa Renée tinha contratado casamento com o imperador Charles V e, depois, com Henry VIII da Inglaterra, ambas as vezes por razões políticas. Pelo mesmo motivo casou-se mais tarde com um italiano, o duque Hércules de Ferrara. Hércules mantinha estreitas relações com a Igreja de Roma. Bem estreitas, pois era neto do papa.
O duque trouxe a sua duquesa para morar na Itália, num grande acompanha- mento de clarins dourados e pajens de escarlate. Embora seu enorme castelo em Ferrara desses sinais de desmoronamento e môfo, a vida da corte era ali divertida e extravagante, uma sucessão interminável de bailes, banquetes, e comédias. Anões, macacos, e papagaios aumentavam o colorido variegado.
A duquesa Benée levara consigo da França uma fé que não agradava ao duque. Ela a aprendera do velho professor Lefevre, da sua prima Margarida, e de outros. De inicio, o duque a tolerou, não se opondo a presença de franceses na sua corte. Mas a Igreja de Roma não tardou a apontar-lhe seu dever. Esses franceses eram inimigos do papa, pois seguiam as heresias Protestantes; não podiam de maneira alguma ficar no castelo de Hércules, neto do papa.
O duque Hércules já estava começando a restringir os amigos de sua esposa quando os viajantes de Basel chegaram aos muros de Ferrara. Teriam chegado disfarçados de monges. A duquesa Renée os recebeu com entusiasmo. O seu secretário, um poeta chamado Clement Marot, teria-lhe informado sobre o jovem líder dos Protestantes franceses. Marot tinha sido o suspeito número sete no Caso dos Cartazes em Paris, refugiando-se em Ferrara.
Com a vinda de Calvino, a duquesa, precisaria protegê-lo contra a Inquisição que já começava a levantar suspeitas sobre alguns dos seus hospedes. Ela tinha, na ocasião, somente vinte e quatro anos de idade. Anos penosos estariam a sua frente. Seria pressionada a voltar a Igreja de Roma. Ao recusar, seria aprisionada. Seus filhos ser-lhe-iam tirados para que fossem criados na fé romana. Assumiria aparência de obediência a Roma com o fim de retornar a sua família. Após a morte do duque Hércules, ela voltaria ao seu castelo na França para transformá-lo num hospital e refugio para os Protestantes perseguidos. Nas guerras religiosas francesas que ainda aconteceriam, seu próprio genro conduziria as tropas contra os Protestantes. Mas Renée permaneceria segura na sua fé.
Nessas dificuldades todas a sua frente, o seu conselheiro fiel seria o jovem vestido de preto que estava agora animando-a na corte de Ferrara. Não tornaria jamais a ver João Calvino, mas o seu conforto e estímulo ajuda-la-iam a ser leal a fé. Por intermédio de cartas, freqüentemente introduzidas no palácio ou na prisão as escondidas, a duquesa era animada pelo seu conselheiro espiritual.
Vinte e oito anos mais tarde, no seu leito de morte, Calvino ditaria sua última carta a duquesa, que então morava no castelo Montargi, na França. Ela estava preocupada pelo fato de ser sogra daquele que lutava tão ferozmente contra os Protestantes. Mas Calvino ditou-lhe, com voz que mal podia ser ouvida, uma carta tranqüilizadora. "Ao contrário", dizia, "a Sr.ª é mais querida e respeitada do que antes, pois aquela conexão não a impediu de fazer uma íntegra e pura confissão do Cristianismo, não somente por palavras como também por feitos tão extraordinários.”Quanto a mim,.tenho em maior admiração ainda as suas virtudes."
Mas tudo isso estava ainda escondido no futuro. Agora, em 1536, Calvino estava conversando com a própria duquesa. Ele tinha esperança de poder falar com outras pessoas de posição elevada na Itália. Mas era suficientemente prudente para se aperceber de que sacerdotes e cardeais ameaçadores o cercavam. Não adentrou-se, por conseguinte, na Itália. Seu plano tinha sido o de vir a Ferrara para animar a duquesa, que era francesa e Protestante. Esperava que Renée pudesse exercer influência ao seu redor. Tinha até esperança que surgiria oportunidade para falar e pregar, Mas nada disso aconteceu. O laço da oposição estava apertando também no castelo do duque Hércules.
Durante as sete semanas que permaneceu em Ferrara, Calvino escreveu algumas cartas. Uma foi enviada a Gerard Roussel, um ex-pregador de Margarida que Calvino conhecia e respeitava. O rei Francis I o havia salvo da prisão e o havia colocado num mosteiro juntamente com os outros dois pregadores de Margarida. Corault, quase cego, havia escapado para Basel, mas Roussel confessara sua "heresia" e voltara a Igreja de Roma. Por isso, o papa oferecera-lhe a mitra de bispo, sendo por Roussel aceita. Calvino não podia resistir a vontade de escrever- lhe.
" João Calvino a um antigo amigo, agora um Prelado", dirigiu-se ao novo bispo. "Que acontece a alguém que, assim como você, abandona seu capitão, foge para o inimigo e destrói o princípio por cuja defesa jurou dar a sua vida? ...É difícil e bem o sei deixar o lar da gente para tornar-se um peregrino. Mesmo assim, este destino que aos homens parece tão severo é transformado pelo Senhor em puro gozo..."
Os peregrinos que estavam em Ferrara saíram repentinamente. O duque Hércules estava extirpando os hereges da sua corte, e a suspeita tinha agora recaído sobre Charles d'Espeville e Louis de Hautmont. Ambos escaparam para fora dos portões da cidade. Alguns supõem que o homem magro, vestido de preto, pregou ao norte na sua viagem em direção aos Alpes, e que era bem-vindo em algumas vilas e enxotado de outras. Ninguém sabe ao certo o que ocorreu nesta viagem. Seguiram caminho, provavelmente, pelo desfiladeiro Saint Bernard. Os córregos montanheses, inchados pelas neves derretidas, saltavam e estrondavam nos seus leitos edregosos.
E para onde iria, agora? Sabia-se que Francis I, com esperança de converter alguns hereges Protestantes, tinha oferecido seis meses de isenção de perseguição para que os Protestantes no exílio pudessem voltar aos seus lares e a, Igreja de Roma. Calvino aproveitou a oportunidade. Atravessou a França e entrou em Paris. Deve ter entrado com grande tristeza, recordando aqueles que ali não mais estavam para recepcioná-lo. Hospedou-se num hotel. A Casa do Pelicano pertencia a outrem.
Está registrado que, em Paris, no dia 2 de junho de 1536, compareceu perante dois tabeliães: "... Jehan Cauvin, Licenciado em Direito, em pessoa, e constituiu seu irmão Antoine, escriturário, residente em Paris, seu advogado geral e especial." João Calvino, possuidor de um grau em direito de que outra maneira poderia descrever-se aos tabeliães? Um perambulador, um pregador herege, um escritor Protestante? João Calvino, "Licenciado em Direito", estava constituindo seu irmão Antoine como seu advogado para representá-lo na liquidação da propriedade familiar em Noyon.
Calvino também discutiu o assunto com Marie, sua irmã favorita. Sua outra irmã, fiel a Igreja de Roma, tinha casado e residia em Noyon. Charles tinha falecido, excomungado da igreja, tendo sido enterrado a noite, numa cova desmarcada, fora da cidade.
O povo de Noyon asseverava que a família de Gerard Calvin tinha dado em nada. Tinha sido uma família tão respeitada, tão fiel a igreja mãe. A filha do hoteleiro morrera cedo demais para conservar seus filhos no caminho da igreja. O advogado do clero tinha se tornado embirrante nos seus negócios com os homens da igreja. Tinha morrido assim, sem fazer as pazes com a igreja. Seu filho Charles, o sacerdote, tinha sido um tipo desenfreado. Esbofeteara, certa vez, um portador de maçã num argumento sobre o seu pai. Mas pior do que isso, Charles tinha se afastado do sacerdócio com amargura e abraçado a "heresia luterana". No seu leito de morte, relativamente jovem, recusara receber o sacramento. Foi, por- tanto, enterrado em campo profano, sem que sua alma tivesse sido abençoada pela igreja. E o outro filho, bom nos estudos, aquele que, a princípio, ia ser padre este João acabou sendo o pior de todos. Ele sabia escrever e falar, cativando a atenção do povo. Ensinava heresias. Queria começar outra igreja, contra a sagrada igreja do papa. Queimaria um dia pelas suas maldades ou na França ou nas fogueiras do próprio inferno. Que coisa horrível ele estava tentando fazer! E João estava virando as mentes do irmão caçula Antoine, o escriturário que trabalhava em Paris, e da sua irmã Marie. Iam acompanhá-lo onde quer que ele fosse.
Assim dizia a outra irmã, a fiel, a única da família que não desencaminhara. As piedosas mulheres de Noyon se arrepiavam ao passar pela residência Calvin na praça do mercado. A que fim tinha chegado aquela família!
João, "o pior deles", atravessava a França novamente, Terminariam logo os seis meses de misericórdia concedidos pelo rei. Não havia em sua pátria nenhum canto sossegado onde pudesse esconder-se detrás de uma porta ou de um nome falso, como tinha feito em asel. Precisava de um lugar assim outra vez, para estudar e escrever. Seria esta a sua contribuição a, nova fé Protestante escritos e livros dos quais os homens pudessem aprender e criar ânimo. Quem sabe Strasbourg seria um bom retiro desta vez. Ou Basel novamente.
Strasbourg estava para o nascente, Ir naquela direção, porém, seria atravessar o caminho de uma guerra. O rei Francis I estava envolvido na sua terceira guerra contra o imperador Charles V. Canhões, carroças e outros equipamentos militares entupiam as estradas. Calvino, por conseguinte, deu uma volta enorme, passando por Lyons, conhecida pelos seus cem tipógrafos, e chegou a Strasbourg pelo sul. Tinha esperança de chegar num determinado dia em Lausanne. Quando tal não foi possível, resolveu passar a noite em Genebra, no lado ocidental do Lago Léman.
Cansado e sujo, aproximou-se do antigo portão Cornavin, guardado por uma sentinela armada. Calvino deu-lhe o seu nome, recebeu um papel recomendando- o aos proprietários das hospedarias de Genebra, atravessou a ponte levadiça e entrou na cidade. Estava fatigado e dolorido. Mas, após um pouco de comida e um longo sono, planejava continuar sua viagem para o norte ao alvorecer do dia. Encontrou uma ospedaria e pediu pousada.