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domingo, maio 21, 2006

Capítolo 10

Errante e Perseguido

Foi um ano de perambulações, um ano de ser caçado.
Calvino era caçado como herege apto para o fogo. Por maneira diferente, era caçado por pessoas sedentas da verdade que ensinava e pregava. Recordando esses meses, Calvino escreveu: "Deus me dirigiu por tantas voltas e mudanças, que Ele nunca permitiu que eu descansasse em qualquer lugar."
Voltou a Paris, após ter saído de Noyon pela última vez. Não podia permanecer ausente dos crentes da capital. Conhecia suas senhas e seus pontos secretos de reunião. Estava de volta a casa de de la Forge, o qual temia pela segurança de Calvino. Cautelosamente entrava e saia das casas dos fiéis, ensinando-os, encorajando- os, fortalecendo-os.
Calvino falava em muitas reuniões secretas, reuniões algumas vezes desbarata- das pela polícia. Ele também sabia escapulir pelas saídas de fundo, saltar por uma janela, sumir-se na escuridão, livrar-se do tiro de um trabuco. Naqueles dias, Calvino, levantando suas mãos aos céus, dizia no fim das suas mensagens: "Se Deus é por nos, quem será contra nós?" Os que não escapavam da polícia, cujos lugares nas reuniões secretas estavam vazios por estarem aguardando na prisão a sua vez na pira de fogo - estes davam testemunho corajoso da verdade dessas palavras.
De la Forge novamente insistia com Calvino para que saísse de Paris. Dizia-lhe que não estava seguro ali. Que toda a França precisava dele. Que os Protes- tantes não tinham líder e que, por conseguinte, precisavam dele. Que viajasse antes que fosse tarde demais. Mas Calvino esperava. O povo de Paris precisava dele também. Havia, outros- sim, um encontro que tinha prometido a um jovem espanhol chamado Servetus. Este Servetus, dois anos mais novo que Calvino, negava a Trindade de Deus e ousadamente afirmava ser o possuidor exclusivo da verdade. Tinha vindo a Paris por que não encontrava convertidos as suas idéias nos estados germânicos. Esperava agora convencer o francês com quem se avistaria.
Calvino foi ao lugar combinado para o encontro. Esperou impacientemente pelo espanhol. Mas Servetus não apareceu. Apareceria perante Calvino dezenove anos mais tarde, numa cidade suíça.
De Paris, Calvino seguiu para outras cidades. Foi, primeiramente, a região dos urzais que cercavam Poitiers. Ali palestrava e ensinava num bosque e, mais tarde, numa caverna iluminada pela luz de archotes. Dizem que foi nesta caverna que Calvino celebrou a Ceia do Senhor pela primeira vez, usando uma pedra chata como mesa. Fê-lo com simplicidade, citando as palavras de Cristo, sem a pompa da missa Católica-Romana. Foi de Poitiers que Calvino enviou os primeiros missionários, três homens que deveriam pregar e ensinar onde houvesse gente para escutar.
Mas a polícia fechava o cerco novamente, quando informada sobre o homem vestido de preto que estava hospedado na cidade. Calvino escapou para Angoulême, a casa do seu colega du Tillet. Muitos o encontraram novamente e pediram que lhes ensinasse. "Todos os meus retiros eram escolas publicas", disse o homem que se considerava acanhado e tímido.
Seguiu depois para Orléans, onde havia estudado direito. Ali concluiu seu primeiro volume publicado após sua conversão. Era um pequeno livro em latim com o imponente título, Psychopannychia. Nesta obra Calvino escreveu contra aqueles que acreditavam que a alma dorme depois da morte até o ultimo juízo. A alma esta viva e acordada, asseverava Calvino, embora tenha deixado o corpo. Em Orléans, Calvino também escreveu dois prefácios a tradução francesa da Bíblia feita pelo seu primo Olivétan. Estas composições cristãs representavam o novo Calvino, pois eram singularmente diferentes das suas palavras eruditas sobre Sêneca.
Foi mais ou menos nessa época que grandes pacotes de cartazes chegaram secretamente a Paris e a outras cidades francesas. Os cartazes, escritos em francês, protestavam contra a missa Católica-Romana. Na manhã de 18 de outubro de 1534, os cartazes misteriosamente apareceram em muitos lugares públicos. Apareceram até no quarto real, no lugar reservado para os lenços de sua majestade. Corriam boatos que o autor tinha sido Farel, o reformador de barba ruiva, que os teria escrito na Suíça onde estava agora trabalhando. A linguagem era dura e provocadora.
O rei Francis I, cujo nome tinha sido mencionado nos cartazes, resolveu vingar- se. A Igreja de Roma também não conseguia conter a sua raiva. O Caso dos Cartazes, como ficou conhecido, encheu as prisões. A fumaça de corpos queimados subia continuamente. Uma nova tortura era usada: um pelourinho de flagelação ajustado para levantar a vitima do fogo e devolvê-la as chamas, assando-a paulatinamente ao invés de queimá-la de uma vez. Em nenhum canto da França havia segurança para o Protestante.
João Calvino, ainda buscando sossego para poder estudar e escrever, viajava em direção a fronteira germânica e Rio Reno. Louis du Tillet o acompanhava a cavalo, levando consigo dois empregados, tendo deixado o seu trabalho e os seus livros encadernados de couro para estar com seu amigo.
Os amigos cavalgavam para o nascente, direção a Metz, a trezentos e vinte quilômetros de Paris. O inverno frio os castigava com picante vento. Em cada pensão onde paravam, os viajantes imaginavam a possibilidade de serem descobertos e entregues como hereges. Calvino viajava com mais dois companheiros constantes: dor-de-cabeça e desarranjo estomacal. E como se isso tudo não bastasse, os amigos acordaram certa manhã para descobrir que um dos empregados havia furtado a bolsa de dinheiro. O ladrão tinha fugido a cavalo, deixando-os sem vintém. Não podiam pedir dinheiro sem revelar as suas identidades. O outro empregado, pessoa de melhor estirpe, emprestou-lhes o suficiente para que atravessassem a fronteira e chegassem a Strasbourg, onde Calvino tinha amigos entre os ministros Protestantes. O pastor Martin Bucer lá estava, ajudando os refugiados franceses que fugiam da perseguição. Calvino tinha-lhe escrito a favor de um desses refugiados.
Talvez não houvesse paz suficiente em Strasbourg, pois Calvino e du Tillet seguiram para o sul. Há uma história que conta que Calvino parou nesta viagem para visitar o sábio holandês Erasmus. Erasmus recuperou para o mundo o Novo Testamento ao traduzi-lo novamente no grego. Mas este grande homem, que havia aberto o caminho para a Reforma, descobrira que "do ovo que botou, um pássaro completamente diferente havia sido chocado por Lutero e Zwingli, " Erasmus recuara então da sua nova fé e fizera as pazes com o papa, o qual oferecera-lhe um chapéu cardinalício pela sua mudança de coração. Seria lembrado na história como um erudito humanista, outrora vinculado à Igreja de Roma. Quando Calvino o visitou, Erasmus estava velho, quarenta anos mais do que Calvino, e a poucos anos da morte, Teria recebido com indiferença o jovem líder francês que parara para o visitar?
Em princípios de 1535, os amigos chegaram a cavalo a Basel o centro suíço de estudos e de publicações. Ali por mais de um ano, terminaram as suas perambulações. Calvino tinha encontrado, finalmente, o seu retiro. Alugou um quarto numa casa suburbana pertencente a Sr.ª Catherine Klein, fechou a porta e pôs mãos a obra. Assumiu o nome de Martinius Lucanius, estranhamente parecido com o de Lutero.
Somente um punhado de pessoas conheciam a verdadeira identidade de Lucanius. Uma delas era Nicolas Cop, o ex-reitor, agora residente em Basel. Não havia visto Calvino desde o dia em que Cop havia sido avisado a caminho do palácio e Calvino tinha escorregado por uma corda de roupas de cama para esquivar-se dos beleguins a sua porta. Longe de Paris, aguardavam ambos com ansiedade as noticias das terríveis perseguições que ocorriam no seu torrão natal.
As noticias não eram nada boas. Algum prisioneiro tímido, para poupar a sua vida, tinha indicado as casas daqueles que participavam das reuniões secretas.
O ódio tinha caído sobre eles embora não tivessem afixado os audaciosos cartazes. De la Forge, aquele homem piedoso e generoso e cuja casa era um refugio para os crentes, tinha morrido na fogueira. Sua esposa estava na prisão. Calvino não podia imaginar a Casa do Pelicano sem esses queridos amigos. O sapateiro paralítico Milon tinha sido atirado na carroça que o levou a morte por lenta torrefação. Calvino o conhecia bem o homem que não podia caminhar, mas cujo meio de vida era fazer sapatos para quem podia. Du Bourg, um rico negociante que havia estado nas reuniões secretas, estava morto também. E Poille da mesma forma, cuja língua tinha sido grampeada a sua bochecha porquanto, ao ser levado ao pelourinho, não cessava de falar sobre o seu Salvador. Haveria muitos lugares vazios nas reuniões secretas em Paris.
O rei Francis I não mais agia com volubilidade para com os Protestantes. Os apelos de sua irmã Margarida não mais o comoviam. Mas teve ainda a bondade de soltar três ministros da prisão e mandá-los a um mosteiro. Dois deles ali se arrependeram de suas convicções Protestantes e voltaram a Igreja de Roma. O terceiro, Corault, quase cego, conseguiu escapar, tendo chegado até Basel. Ali encontrou-se com Calvino, a quem relatou o que estava acontecendo em Paris.
Era evidente que Francis I achara conveniente inventar uma grande mentira sobre as suas perseguições. Era suficientemente sagaz para perceber que outros países, especialmente os estados Protestantes da Alemanha, o odiariam pelas suas crueldades. Precisaria destes países como aliados seus contra o imperador Charles V que o havia derrotado em Pavia. Francis I escreveu, pois, aos príncipes germânicos, explicando que os homens que havia lançado nas prisões e nas fogueiras eram da pior espécie: rebeldes, agitadores, um amontoado de anabatistas que desejavam separar a igreja do estado. Teriam sido rebeldes e agitadores o generoso de la Forge, o paralítico Milon, os outros cujas faces Calvino conhecia, e todos os demais que ele lembrava como irmãos no Senhor? Não havia na França quem poderia falar por aqueles que morreram na fogueira. Não havia quem falasse a verdade sobre a fé dos mártires.
Mas um francês no exílio podia falar. O francês que estava hospedado com a Sr. Klein em Basel sentou-se a sua escrivaninha e mergulhou sua pena no tinteiro. Trabalhou febrilmente para concluir o que estava escrevendo. Era o fim do verão quando escreveu a carta dedicatória, Acrescentando a carta aos seis capítulos já concluídos, Calvino foi a casa de Thomas Platter, o tipógrafo cuja oficina se encontrava na tabuleta do Urso Preto.